terça-feira, 16 de outubro de 2012

Finalmente


Provavelmente ninguém vai lhe ensinar isto. Dê um jeito de aprender, você vai precisar. Saiba desistir, porque em algum momento da vida isso vai ser necessário. Focar o que é, e não o que poderia ter sido. Colocar a vida à frente do orgulho. Seus desejos à frente do que os outros desejam pra você. Uma ousadia, um disparate, uma loucura, eu sei. Provavelmente ninguém vai lhe ensinar a entender o que você realmente deseja. Mas dê um jeito de aprender. Em algum momento da vida, desistir vai exigir mais coragem que seguir em frente. Desistir será o mesmo que parar de tentar. E parar de tentar pode ser finalmente o começo.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Porquinho

Ele economiza vida para que lhe sobre mais. Na tentativa de evitar a falta, vive na falta. Se ele tivesse um slogan, seria "Viva com moderação". Pra não gastar.

domingo, 3 de junho de 2012

Cadeado

Trancou a escritora em casa e foi pra rua trabalhar. Tratou de abrir os olhos e um sorriso, mas fechou ouvidos e punhos, de modo que qualquer raciocínio escorregasse pela pele, sem aderência nem eco. As cenas que lhe passavam coloridas não faziam sentido. A ordem era sorrir e seguir em frente.

Trancada a pensadora no quarto, pôde seguir na direção do barulho. Tudo para não ouvir seu turbilhão, ligada num piloto automático que sorria como maquininha de soltar bolhas. Piada sem graça do cliente, hahaha. Pedido idiota do chefe, hahaha. Prazo impossível do outro departamento e mais algumas risadas saíam sem som, quase cronometradas.

Ato contínuo, chegou em casa ainda sorrindo, embora não soubesse por quê.

Ao abrir a porta, foi surpreendida por uma mulher aflita, que caiu no choro sem fim. E enquanto chorava, falava. Eram mais que frases, eram versos. Em poucos minutos ela já tinha dito um livro inteiro.

Antes de ouvir a última página, adormeceu exausta. Sem pensar nem sentir.

No dia seguinte ela acordaria mais uma vez. Para então decidir qual das duas sairia de casa.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

sábado, 14 de abril de 2012

Instruções para desvendar histórias

Coloque o ipod no ouvido. Sente-se num banco da sala de embarque do aeroporto de Brasília, interrompa a leitura do seu livro e observe as pessoas passando. São muitas. Todas têm um destino, uma pressa, uma ansiedade, uma alegria e uma dor. Se o que tocar no seu ipod for dramático, você verá as dores delas. De todas as cores, da roxa e da rosada. Se a música for em francês e houver um violino, você verá estampadas em seus rostos diversas saudades. Mas se a próxima faixa for alegre, será divertido observar. Verá que todo mundo é um pouco esquisito e também um pouco familiar.

sábado, 7 de abril de 2012

Um outro ponto

Ele era marginalizado. Diante da suavidade das vírgulas e do autoritarismo dos dois pontos, o ponto de exclamação era um convite às críticas. Exagerado. Era o que dizia o ponto final, sem alardes. Escandaloso… Assim o definiam as reticências, sempre escondendo uma maldade além da escrita. Quem ele pensa que é com esse entusiasmo todo? – indagava irritado o ponto de interrogação.

Por eles, a exclamação seria banida do grupo. E ponto final.

Exclamar era coisa para os sem classe. O que mais dizer de um sinal usado nos lamentáveis momentos de exaltação ou susto? O resto é puro deslumbre, pensava a gramática em peso. E os nobres não se deslumbram, apenas entreabrem a boca, fazem um curto comentário e voltam às sua inalterada pose.

Mas ele seguia alegre, sem dar ouvidos às maledicências, até porque, por falar demais, nem tinha tempo para ouvi-las. Frequentava as ofertas do varejo, aumentando vendas. Visitava a casa dos outros em nada criativos cartões de aniversário – mas nem por isso menos sinceros. Nos fins de semana, dançava samba e pagode, enquanto os outros frequentavam recitais de piano sem mover o pescoço.

Até que vieram três dáblios juntos e uma tal arroba. E o que antes eram cartas espaçadas tornaram-se e-mails frequentes, muitos por dia, entre pessoas do mundo todo, até as que se viam todos os dias. E-mail para uma demanda de trabalho. E-mail para uma urgência. E-mail para falar de amor. E-mail pra perguntar. E-mail pra responder.

Em vez de se olhar nos olhos, as pessoas começaram a olhar para as telas. Ali, era primordial depositar a emoção certa. Como dizer de uma saudade doída usando apenas um ponto final? Como falar de uma urgência com reticências? Como falar de alegria sem exclamações? Na pressa, vírgulas passaram a ser engolidas, deixando suas parentes preocupadas. Interrogações eram tão mais usadas, que sofreram estafa. Mas o ponto de exclamação, entusiasmado, estava sempre a postos. Sem ele, e-mails eram mal interpretados. Casais tinham discussões acaloradas devido a mensagens mal compreendidas. Evitar o ponto de exclamação era burrice.

E ele vinha sempre, agora mais esfuziante e sorridente, satisfeito por sua desnecessária alegria ter encontrado, enfim, um sentido.

Sem saída, os outros pontos e vírgulas se renderam, entendendo que, cada um a seu modo, todos tinham sua importância.

E no dia 24 de dezembro, na reunião da família gramatical, os ex-posudos o esperaram em peso. E quando ele entrou, precisou exclamar de susto com o que ouviu e viu: Feliz Natal!!!! – gritaram todos juntos. E aquele Natal virou Carnaval. E o que se ouvia no som era um samba de Noel.

Na caixa

Ela atravessa a rua carregando a caixa de um violoncelo. Atravessa em silêncio, mas grita para o mundo: toco violoncelo. Atravessa a rua e o meu coração, como uma faca afiada sangrando a minha inveja.

Não desejo nada de mal a ela. Nem mesmo que ela pare de tocar. Aliás, nem sei se ela toca. Mas eu gostaria de atravessar a rua carregando aquela caixa. Eu ouviria o som dos pescoços do mundo se voltando para mim – e seria um solo de violoncelo.

Tocar violoncelo me parece algo importante. Muito mais importante do que tantas outras coisas que faço. Olhar para o meu celular pra ver se chegou e-mail. Comprar pão. Andar pela calçada portuguesa com o meu salto 8, tentando preservar o salto – e o tornozelo.

De salto, carregando o violoncelo, talvez seja difícil atravessar a rua. Muitos riscos em apenas uma travessia. Tudo bem, eu abro mão do salto. Mas o violoncelo é meu – e eu daria conta de atravessar com ele, como quem leva uma bolsa a tiracolo, coisa pouca, ato corriqueiro. Eu nem pentearia os cabelos. Sairia exibindo as minhas olheiras naturais – quem as notaria? Meu violoncelo falaria mais alto. E tocaria o coração de cada um naquela cidade cinza em meio às buzinas.

Atravessar a rua carregando a caixa de um violoncelo é ser protagonista entre os figurantes. Mas eu nem ligo – não percebo a grandeza do que levo, nem o peso, nem o fato em si. É normal carregar meu violoncelo. Ele é meu grande companheiro. Somos eu e ele, nos completamos. Eu e meu violoncelo.

Mas agora eu não posso falar mais. O sinal abriu para os pedestres e eu preciso atravessar a rua. Eu e ele, o meu violoncelo.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Janelas

Da janela do carro, vejo muitas vidas que passo a imaginar. Invento para elas profissões, nomes, filhos e acasos. Legendo as falas e crio novos diálogos. O aparelho de som do carro faz a trilha sonora dos filmes que crio, com cortes rápidos e uma profusão de personagens.

Da janela de casa, a ilusão de segurança entra em mim, encontrando abertas todas as portas. Pela fresta entra um resto de medo e escapam alguns sonhos.

Do alto do arranha-céus, minha janela é observatório de formigas. Da janelinha do avião, anseio pela aterrissagem enquanto atravesso o mar de algodão. Nos quadradinhos do trem, a velocidade pinta quadros cor de paisagem.

Dos meus olhos, janela de mim, vejo um mundo que é só meu. Janelinhas mínimas para tudo ver. De vez em quando encontro outras janelas que só me veem a mim. Uma janela contempla a outra e dali podem vir relatos, abraços e convites para um café. Curiosas sobre as outras janelas, as nossas estão sempre enganadas.

Janela. Para o jardim da praça. Para a casa do vizinho. Para a alma do amigo. Para emoldurar a vida, criando romances de bobos fatos.

Janela de inventar histórias. Câmera que não enquadra: os objetos é que escolhem como se enquadrar. Janela de sonhar. Ou de jogar sonhos pela janela.

A TV é janela tecnológica. Mudo a paisagem constantemente – e não me contento com nenhuma delas. No computador, abre-se a janela para um mundo sem fim. Um país de maravilhas que nos aprisiona pequenos, angustiados como coelhos sempre atrasados. Fechamos o notebook, exaustos, para finalmente enxergar a simples janela de abrir.

Da janela pra fora, desejo de liberdade. Da janela pra dentro, a história do vizinho em quadrinhos.

As ideias que me vêm são janelas floridas. No papel viram portas. Entro para ver o que há.

Apaixonada, observo a janela do outro, que me dispara o coração e me atiça a curiosidade. Mas se sou eu a paixão do outro, do meu parapeito eu o assisto a me fazer serenata.

A vida é uma sequência de janelas e portas, janelas e portas, sonho e realidade.

Paixão é janela. Amor é porta. Decote e nudez. Namoro e casamento. Gravidez e filho. Preconceito e conceito. Janelas e portas, janelas e portas. O segredo é entrar e criar novas janelas, emoldurar outras cenas, fazer das verdades sonhos enjanelados.

Para que a vida, parede branca, tenha sempre novos quadros para contemplar.