domingo, 22 de setembro de 2013

Um amor que se põe

O céu ostenta uma nuvem de fogo. Uma gorda e fofa brasa disfarçanndo o sol sobre um azul opaco de fim de tarde. Volto para casa depois de mais uma viagem. Desta vez, deixei alguma coisa por lá. Talvez a esperança de uma ilusão que se dissolveu pelo caminho. 

Preciso chorar por isso tudo. Tenho chorado a prestação, em pequenos momentos de delicadeza que me remetem ao que sonhei para nós. A música do comercial das bolas, que girava em looping no seu notebook durante aquela noite em que nos encantamos um com o outro.

Junto com uma sensação de fracasso, ficaram muitas interrogações, a maioria delas vindas de perguntas que você mesmo nunca quis se fazer. Devolvo aqui cada uma delas.

Lembro de um encontro simples e natural entre duas pessoas dispostas a seguir juntas, não importava o que acontecesse. Lembro de noites em claro em que muitos segredos foram revelados, confissões feitas e acolhidas por corações abertos e limpos. Lembro de medos postos na mesa, planos traçados e uma família sendo delicadamente construída com tudo o que tínhamos recolhido – de bom e de ruim – pelo caminho. Lembro dos seus olhos verdes me olhando vivos como sempre, ávidos por tudo o que eu tinha para lhe dar. Lembro de noites maldormidas em uma cama não tão grande, como se adormecer fosse a ameaça de perder de vista a descoberta preciosa que havíamos feito. Nós tínhamos nos encontrado. E o trato de seguir de mãos dadas foi espontâneo, esperado, comemorado, comovente.

Lembro de uma sensação de proteção com a qual há muito tempo eu não sonhava. 

Não tive dúvidas: era com você que eu queria ir.  Eu sabia que não seria fácil nem simples. Mas cada vez que você tomava a minha mão eu sentia que valia a pena ir naquela direção. Fui inteira, de mala, cuia e filho, sem me importar em deixar reservas para uma possível mudança de planos. 

Você não precisou ir. Apenas ficou. Você, que se planeja. Reserva para o futuro. Você, que poupa dinheiro, palavras, fúria, noites de sono. Poupa a si mesmo para o que pode faltar mais adiante. Você prefere viver na companhia do medo – é a ele que você verdadeiramente se entrega. Eu, não. Eu não guardo nada. Nem dinheiro, nem raiva, nem palavras, nem segredos.

Como escrevo essa carta para não deixar nem mesmo palavras não ditas.

Gosto da sensação de ter sido lapidada pelas pessoas. Com um ex-namorado aprendi a dirigir mais suave, com uma amiga aprendi o prazer de um café, com meu pai aprendi o humor, com minha mãe a alegria. Você me ensinou muitas coisas e eu estive disposta a aprender. 

Você não via em mim nada para somar. Eu sou muito brava, perco a paciência fácil, digo o que penso sem calcular. E a intensidade dessa fúria é a mesma que alimenta um amor que luta muito e não desiste fácil. Sou furiosa para confessar o que me incomoda, tanto quanto para lutar pelo amor em que acredito.

Você se preserva, não sei exatamente por quê, mas o fato é que se guarda muito, se guarda inteiro. Para não lhe faltar. E por muitas vezes você não disse o que sentia, o que pensava, preferiu se controlar para não machucar. Com algum fato ou alguém você aprendeu que é feio se mostrar, sentir raiva, levantar a voz, ser humano e falível, como se evitar desrespeitar o outro justificasse desrespeitar-se a si mesmo.

Já eu aprendi que respeito anda lado a lado com a palavra mútuo, e peitei as leis da polidez. Aprendi que deixar escapar minha fúria pode ser um grande sinal de amor. Despir-se diante do outro é entrega. Aprendi que aceitar os meus defeitos é antes de tudo não escondê-los. Nem de mim, nem de ninguém. 

Sou falível, sim. Sou bicho, às vezes. E é isso que me deixa ser gente, e não robô. Não sorrio o tempo todo, não falo baixo e comedida por mais tempo do que aguento. E é esse ser falível e factível que amou você. Amou muito.

E me mostrei. E pedi que você não desistisse de mim. E quis ajudar você a sair da sua casca, a se conhecer melhor, a entender o que realmente deseja e a lutar por isso. 

Você desistiu muito rápido, muito cedo, muitas vezes. Diante de qualquer dificuldade, você preferia desistir. Desistir de mim ou de si mesmo? E, como quem acaba o jantar e pede a conta, logo estava na hora de ir embora. 

Eu não era como você imaginava. Talvez tenha lhe faltado a lição de que ninguém que ainda não conhecemos é como imaginamos, ninguém mesmo, pois a imaginação é muito sem imaginação – a realidade é bem mais criativa.

O amor tira cada um dos parceiros do seu lugar para que cresçam e se tornem melhores. 

Então chegamos a um ponto: sua vaidade. Essa, que vem te matando aos poucos. E vaidade não é o mesmo que autoestima, muito pelo contrário. Vaidade é o que as pessoas colocam no lugar vago da autoestima.

Você não está disposto a mudar nada – mudar é muito arriscado, não é mesmo? Você não sabe amar. Diz "eu te amo" sem ter a menor ideia do que isso significa.

Sua calma nada mais é que a falta de alma. Algo ou alguém ou episódios do passado fizeram de você uma ilha. Uma ilha deserta, não habitável, sem verde nem água nem vida.

Sim, você me deu muito. Mas se esqueceu de me dar o mais precioso: o coração. Talvez tenha até tentado, mas não se pode dar o que não se tem.

Amar é bom, aquece o corpo, me faz sentir viva, me altera, me tira do lugar, me muda para melhor. Mas você não se acredita, não se enxerga, não se sente, não se mistura, não vive.

Seus abraços são poucos e parcos. Seus passos são apenas em sua própria direção. Que pena que alguém lhe tirou a alma tão cedo e te fez esse fantasma vagando sem rumo e sem amor. Você se ocupa das telas da TV e do videogame para não pensar no vazio que lhe invade dia e noite.

Amo alguém que não existe, que talvez nunca tenha existido, e preciso me despedir. Não quero outra solidão para acompanhar a minha. Deixe-me só com ela, que tem muito a me nutrir.

5 comentários:

  1. Belíssimo. Já conheci gente assim. Um dia ele se acha. Abraço!

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  2. Deixaste vida na falta de vida dele. Sou quase como ele, uma ilha. Cada um com a sua bagagem toma as decisões de seus destinos. Há quem teve medo e foi morar em uma ilha. Até aceita visitas, mas não se joga no mar. É medo de não encontrar o caminho de volta. Pobre de mim, pobre dele. A gente tenta se achar. Juro. Tenho encontrado pedaços de mim. O quebra cabeça é dificil, mas já tenho mostrado meu coração, o dificil mesmo é doar. A gente se doa, dá tudo que para os outros parece difícil. Mas despir-se a ponto de dar o coração ainda é desafio, e tem gente como você que assume a missão. A vida dele é por ti muito grata. Mas não foi dessa vez a queda do muro de Berlim. E é um lamento imaginar que pra queda tenha que existir guerra. E por mais que esse seja o teu sobrenome, o teu amor intenso vive de paz. Fica firme, Cris. Tu és prova viva de que o tempo sabe o que faz.

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  3. Parece que você escreveu por mim. Escolhi a leveza de ser feliz.

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  4. Que texto bonito, triste, denso. Espero que seja só inspiração, não a narração da realidade que as vezes insiste em ser boba, feia, chata e vazia...

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  5. Cris, tantos anos te acompanho. Tuas palavras sempre comoveram minha alma! Torço muito pela tua felicidade e te admiro demais. Sorte do Francisco, e sorte tua por ser assim tão intensa. Tudo passa, mas tu sabe disso não é. Deus te abençoe.

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